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Chegava assim o dia em que íamos deixar a Irlanda. Tinham sido apenas 3 dias, mas tinham sido intensos. E faltava ainda um, uma vez que os nossos voos eram só às 8 da noite no aeroporto internacional de Belfast.
Ainda em Donegal aproveitámos a piscina e o jacuzzi antes do pequeno-almoço em Mill Hill Hotel. E dissemos adeus a este condado que nos deu tantas memórias. Foi também neste último dia que o sol nos deixou, o único dia da viagem cinzento e com ameaça de chuva que chegou miudinha a meio do dia.

Tínhamos deixado o itinerário para este último dia em aberto e como o tempo não era o melhor escolhemos visitar uma das maiores cidades da Irlanda do Norte, onde facilmente nos podíamos abrigar se assim fosse necessário.
Passando já a fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte eis que parámos em Londonderry/Derry.
Londonderry/Derry
Esta é a segunda maior cidade da Irlanda do Norte sendo apenas ultrapassada pela capital, Belfast. O nome da cidade traz várias disputas e por isso escrevo aqui das duas formas em que é conhecida, Londonderry e Derry. Oficialmente chama-se Londonderry e assim o é desde 1613 quando o rei James I adicionou London a Derry. Esta é a forma escolhida por aqueles que são os chamados de Unionistas (Unionists) normalmente da religião Protestante. Os Unionists acreditam que a Irlanda do Norte deve pertencer ao Reino Unido, como o é actualmente. Por outro lado, Derry é a forma que os nacionalistas preferem chamar a cidade. Estes, normalmente da religião católica, acreditam que as duas Irlandas deviam-se unir e formar um só país, país esse independente da Inglaterra.

Como já falei em outras páginas sobre a Irlanda, especialmente quando falei sobre a Irlanda do Norte, há ainda hoje uma grande tensão política entre nacionalistas e unionistas, sendo o mais recente conflicto conhecido como ‘The Troubles’ que decorreu no final do século XX (década de 1960 a 1998). Como podem ver este grande conflicto é bastante recente e mesmo nos dias de hoje é um tema sensível e do qual é preciso algum cuidado quando mencionado na Irlanda e Irlanda do Norte. Foi sobre isto que o meu amigo nos alertou quando chegámos à cidade; para não falarmos abertamente sobre o nome da cidade, pois a forma como a chamaríamos seria associada a uma crença na parte nacionalista ou unionista e que podíamos ser assediados porque quem nos ouvisse. Não quero com isto dizer que nos sentimos inseguros ou com medo, de forma alguma, mas como algo a evitar se pudéssemos.
The Peace Bridge
Estacionámos o carro na margem direita do rio Foyle e atravessámos a ponte da paz (The Peace Bridge) em direcção ao centro da cidade. A ponte foi inaugurada a 25 de junho de 2011 e o seu nome simboliza a significativa melhoria das relações da parte da cidade maioritariamente unionista, na margem direita, e a parte maioritariamente nacionalista na margem esquerda, onde fica o centro histórico. A ponte foi financiada pelo departamento do desenvolvimento social, o departamento do ambiente e o departamento da comunidade e governamento local para alcançar uma melhor relação entre as duas zonas de diferente crença política.

Para além do simbolismo desta ponte a sua construção é delicada com curvas subtis oferecendo uma bonita paisagem das duas margens divididas pelo rio Foyle.
Guildhall
Como o tempo começou a piorar entrámos em Guildhall (o edifício da câmara municipal). A entrada é gratuita e está aberto aos visitantes desde as 9 da manhã até às 8 da noite, de segunda a sexta, e até às 6 da tarde durante o fim-de-semana. Aqui fomos encontrar várias exposições focando-se em diferentes partes da história do país, da cidade e do próprio edifício.


Aqui deixo alguns breves pormenores daquilo que aprendemos nas exposições que visitámos em Guildhall. Para quem estiver interessado, é possível fazer uma tour virtual 3D ao edifício que está disponível através deste link: https://guildhallderry.com/take-the-tour/
Século XVII – Plantation of Ulster
A Guerra dos Nove Anos envolveu vários países da Europa contra Inglaterra. No final, Inglaterra saiu vencedora e pela primeira vez o rei de Inglaterra, James I, passa também a governar a Irlanda e a Escócia. Foi aqui que oficialmente começou o período da história chamado de Plantation of Uslter que decorreu entre 1609 e 1690. Em linhas muito breves, esta foi uma tentativa de repovoamento da região de Ulster com pessoas vindas da Inglaterra e Escócia para anglicização desta zona da Irlanda em detrimento dos irlandeses que aqui viviam, considerados como selvagens pela coroa inglesa.
Eu não vou entrar em grandes pormenores, podem encontrar facilmente mais informações sobre a Guerra dos Nove Anos e sobre a Plantation of Ulster na internet. Por isso, vou apenas fazer um breve resumo do que sucedeu durante estes quase 80 anos na Irlanda.

Primeiro rei inglês a governar a Irlanda
O primeiro rei de Inglaterra a governar a Irlanda foi Henry VIII, o criador da Igreja Protestante e conhecido por mandar matar as suas esposas (mais pormenores sobre este rei podem ser lidos nesta página: Hampton Court). Henry VIII tornou-se soberano da Irlanda em 1541 e foi a partir daqui que a coroa procurou constantemente afirmar o seu poder sobre a Irlanda. A partir de 1550, áreas a sul e a oeste da Irlanda foram zonas escolhidas pelos ingleses na esperança de formar aqui colónias. O esquema para repovoamento na zona de Ulster começou mais tarde, na década de 1570, mas rapidamente se tornou claro para a coroa inglesa que seria necessária uma abordagem mais coerente e disciplinada para controlar e domesticar aquela que era considerada a província mais insubmissa da Irlanda.
Início do projecto de repovoamento de Ulster
Em 1609, rapidamente depois da decisão da coroa inglesa em ‘plantar’ Ulster, foi criada uma comissão e publicado o plano detalhado de repovoamento. O primeiro passo a tomar era conduzir um levantamento das terras e cartografá-las. No entanto, havendo uma grande pressão da coroa inglesa em iniciar o processo, o levantamento desta informação foi feito de uma maneira pouco precisa; ‘inquérito por inquisição’. Ou seja, as medidas das terras de Ulster foram obtidas a partir de informação dada pelos locais. Pior ainda era que a medida usada pelos irlandeses para tal efeito era ‘ballyboes’, uma unidade de terra definida pela capacidade de sustentar duas famílias. Como se deve calcular, esta medida seria variável consoante a qualidade da terra para agricultura. Conclusão, os ingleses não conseguindo converter ‘ballyboes’ para acres acabaram por subestimar a área total de Ulster em apenas 1/8 do que na realidade era.
Participação de Londres e a lotaria de terras
Como era esperado, a cidade de Londres acabou convidada a participar neste projecto de repovoamento. Afinal esta cidade era conhecida como a fonte financeira para a coroa em momentos de necessidade. Foi assim que 55 companhias de Londres se organizaram em 12 grupos e prepararam-se para a lotaria das terras de Ulster.
Pois foi fazendo um sorteio que se pensou dividir as terras de uma maneira justa. Os lotes de terra foram sorteados em Londres a 17 de dezembro de 1613. Claro, que devido aos cálculos grosseiros feitos das terras, todas as Companhias de Londres, sem o saberem, receberam mais terra do que a esperavam. Esta lotaria aconteceu depois de terem sido feitas concessões de terras a alguns irlandeses que eram considerados pela coroa como ‘merecedores’ tal como concessões de terras à igreja. Mas a coroa não só deu piores terras a este grupo como também cobrava rendas mais altas.
Objectivo inicial – remoção total dos irlandeses
Quando o plano de repovoamento foi inicialmente pensado, o objectivo era de remover os irlandeses nativos na sua totalidade, mas bastante cedo a coroa percebeu que tal seria impossível. Marcaram-se prazos para a remoção dos irlandeses, mas estes foram adiados várias vezes até que finalmente foi decidido que nas propriedades maiores seria permitido um pequeno número de irlandeses. Mas também isso era difícil como mostraram os inquéritos realizados em 1619 e 1622, onde afinal o número de irlandeses superava o número de colonizadores em quase todas as propriedades. E claro que não havia um ambiente apaziguador, afinal os proprietários falavam uma língua diferente, praticavam e promoviam uma religião diferente e podiam despejar os seus inquilinos a qualquer momento. Para mais os irlandeses ressentiam-se dos impostos cobrados e da perseguição constante aos padres católicos por uma religião estrangeira
Impacto em Ulster
Na década de 1630, o repovoamento apesar de bem estabelecido em Uslter e na cidade de Londonderry era bastante diferente do que a coroa tinha imaginado 20 anos antes. Para os irlandeses nativos, este projecto mudou Ulster de uma forma extrema, tornando-a irreconhecível. Apesar de mais de 30.000 colonizadores britânicos se terem estabelecido em Ulster, estes não só não tiveram sucesso em remover os irlandeses nativos da região como não os conseguiram converter ao anglicanismo. Isto devido em grande parte ao cálculo erróneo das terras disponíveis e da forma como foram divididas. As Companhias de Londres não só não alcançaram os objectivos iniciais de repovoamento e de recuperação dos seus investimentos, como muito menos ainda fizeram as fortunas que lhe foram prometidas.
Muitos venderem as suas terras e aqueles que ficaram, acabaram forçados a confiar nos seus inquilinos irlandeses enquanto se defendiam de ataques e crescentes exigências de uma coroa inglesa que se mantinha impaciente e claro gananciosa.


História de Guildhall
Guildhall começou a ser construído em 1887 e foi inaugurado ao público em 1890. Este edifício foi concebido por John Guy Ferguson e financiado pela Ireland Society (Sociedade Irlandesa). A arquitectura da torre do relógio foi inspirada pela famosa torre do relógio Big Ben. Foi nesta altura que foi criada uma cápsula do tempo que continha moedas e jornais da época, escondida junta a este edifício.
Dezoito anos depois, em 1908, um incêndio destrói grande parte de Guildhall, apenas deixando intactos a torre do relógio e a parte de trás do edifício. Felizmente em 1912, de acordo com o projecto delineado por Matthew Alexander Robinson, Guildhall é reconstruído, altura em que o grandioso orgão com 3132 tubos, o segundo maior órgão na Irlanda do Norte, passa a fazer Guildhall sua casa. Foi também em 1912 que foi inaugurado o primeiro vitral desenhado por Campbell Brothers.
Um dos eventos mais importantes em Guildhall decorreu em 1953 quando a rainha Isabel II e o seu marido, o Duque Filipe de Edimburgo, visitam a cidade pouco depois da coroação da rainha.
Mas Guildhall também presenciou protestos e conflictos. Por exemplo, em 1959 as mulheres que viviam na base naval em Derry, Springtown huts, juntaram-se em protesto contra as más condições de habitação, protesto esse precursor do movimento dos direitos civis nos anos 60. Mais tarde, em 1972, Guildhall é atingido por duas bombas durante o período conhecido como ‘The Troubles’. Neste bombeamento o órgão e a estátua da rainha Vitória ficam danificados.
Em 1977, depois de Guildhall ser restaurado num processo que custou 1.7 milhões de libras, o edifício é novamente aberto ao público. Outro evento importante em Guildhall decorreu em 1995, sendo este o local onde o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, discursou durante a sua visita à Irlanda do Norte.
Mais recentemente em 2010 houve um projecto de renovação na qual se encontrou a cápsula do tempo criada em 1887. Em 2013, como resultado deste projecto, Guildhall foi novamente aberto ao público.
Walls
A cidade de Londonderry ou Derry, como preferirem chamar, está cercada pelas muralhas construídas em 1613. Enquanto se atravessa este, que é o maior monumento sob os cuidados da Irlanda do Norte com 1.5Km de circunferência, fica-se a conhecer toda a cidade numa diferente perspectiva.


As muralhas foram erguidas como forma de defesa da nova cidade, Londonderry, como resposta da coroa à recente introdução de artilharia na guerra. As muralhas foram construídas com 10 metros de largura e inicialmente formavam apenas uma muralha com 8 metros de espessura. As muralhas tinham 4 portões marcados por torres rectangulares que se elevavam acima das muralhas; Shipquay Gate, Butcher Gate, Bishop’s Gate and Ferryquay Gate. Mais tarde foram adicionados outros portões como se pode ver no mapa abaixo.

Derry Girls Mural
Como já falei muito sobre assuntos sérios e pesados, vou agora mencionar um local muito famoso em Londonderry/Derry, por motivos bastantes diferentes. Ou se não famoso, pelo menos é um local especial para aqueles que viram a série Derry Girls.
Este grande mural pode ser encontrado na Orchard Street e representa o elenco da série. A série para quem não conhece segue a vida de um grupo de cinco estudantes no ensino secundário na década de 90 durante os ‘The Troubles’. A série de comédia foi vencedora do prémio BAFTA TV.

Eu pessoalmente nunca vi a série, mas para quem vive na Irlanda ou em Inglaterra ela é bastante conhecida. Ou pelo menos assim deram entender os meus amigos que vieram comigo nesta viagem, um deles de Belfast e outro de Londres. Talvez tenham interesse em ver alguns episódios antes de visitarem esta cidade que fica na fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.
Acho que a série está disponível na Netflix ou no Channel 4 (canal de televisão inglesa).


Antes ainda de deixarmos a cidade fizemos uma paragem no Guildhall Taphouse que fica mesmo ao lado do edifício de Guildhall.
Última hora na Irlanda do Norte
Como chegámos com uma alguma antecedência à zona do aeroporto fizemos uma paragem de meia hora em Antrim Castle Gardens. Quando estacionámos já estavam para fechar a Clotworthy House tal como o Antrim Platinum Jubilee Clockwork Garden, apesar de a música ainda tocar. No entanto, a parte da floresta estava aberta ao público e pudemos ainda ver as ruínas do castelo e atravessar o jardim Her Ladyship’s Pleasure Garden.
Não ficámos muito tempo, afinal com muita pena nossa tínhamos mesmo um avião para apanhar, mas este é um dos locais ao pé de Belfast que com certeza valerá a pena considerar por quem visitar a Irlanda do Norte.


De coração cheio saímos da Irlanda com muitas memórias e com a certeza que podíamos deixar a Irlanda mas a Irlanda nunca nos deixaria.
Cliquem em baixo para ver para outros locais da Irlanda a visitar.